segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Sobre a transposição do Rio São Francisco

No ano de 2005, Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, na Bahia, realizou greve de fome durante dez dias, em protesto ao projeto governamental de transposição do Rio São Francisco. Através deste ato não-violento, conseguiu atrair a atenção da opinião pública e obteve também a oportunidade de negociar com o presidente Lula a questão do abastecimento de água no semi-árido nordestino.

Entretanto, como o Ministério da Integração Nacional – responsável pelo projeto – segue com a proposta da transposição, há alguns dias atrás (22/02) Dom Cappio divulgou uma carta enviada ao presidente Lula, solicitando a reabertura das discussões e a análise de propostas alternativas que, segundo o bispo, totalizam “530 obras para solucionar os problemas de abastecimento hídrico até 2015 (...) mais baratas, mais abrangentes, mais eficientes que qualquer obra de transposição hídrica.

Em novembro do ano passado, o Tribunal de Contas da União realizou uma auditoria no Projeto de Transposição, cujos resultados indicam uma abrangência social aquém do esperado em vista dos investimentos estimados.

Assim, em minha opinião, a perseverança de Dom Cappio é o testemunho de que temos de nos posicionar e ter senso crítico acerca de temas relevantes como este, cujos impactos sócio-ambientais podem ser desconsiderados em favor de interesses políticos e econômicos. Veja abaixo a íntegra da carta do bispo ao presidente.

Barra, 21 de fevereiro de 2007
Quarta-feira de Cinzas

Caro Presidente Lula
Paz e Bem!

Escrevo-lhe hoje, dia em que a Igreja do Brasil lança a Campanha da Fraternidade 2007 sobre a Vida da Amazônia e toda a sua riqueza humana e natural.

O objetivo desta carta, amiga e fraterna, é retomar o diálogo que assumimos juntos por ocasião de nosso encontro no dia 15 de dezembro de 2005 em sua sala de trabalho no Planalto. Agradeço pelas oportunidades que os representantes da sociedade brasileira e
representantes do governo tivemos de iniciar o debate sobre assuntos tão importantes como: Projeto de Revitalização do São Francisco, Projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, Projeto de Desenvolvimento Alternativo para o semi-árido brasileiro, na busca de um consenso que soe em acontecer numa sociedade democrática.

Retorno o diálogo justamente quando a humanidade, estarrecida, toma consciência das conseqüências do aquecimento global, com impacto em todo o planeta, particularmente na vida de bilhões de seres humanos, inclusive na já historicamente oprimida e humilhada população nordestina.

Retomo o diálogo quando o Rio São Francisco, mais assoreado, sofre uma grande cheia e sua população ribeirinha, a quinhentos metros do rio, passa sede, como mostrou, nessa semana, o Jornal Nacional.

Retomo o diálogo quando uma menina morreu afogada em um dos canais que supre os perímetros irrigados de Petrolina (Pe), por ter ido "roubar" água para matar sua sede e da sua família.

Retomo o diálogo quando o senhor fala em iniciar as obras de transposição que irão consumir inicialmente R$ 6,6 bilhões, mais de 50% de todo o orçamento destinado a recursos hídricos no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC).

Retomo o diálogo quando o Tribunal de Contas da União (TCU) afirma publicamente, em seu relatório, que o Projeto de Transposição de Águas do São Francisco não beneficia o numero de municípios e de pessoas que afirma atingir.

Retomo o diálogo quando o mesmo Tribunal, através do acórdão 2020/2006, determinou ao Ministério da Integração e ao Ministério da Defesa que não utilizem recursos públicos para execução de obras de transposição enquanto não houver decisão definitiva sobre a validade de licença prévia concedida pelo Ibama.

Retomo o diálogo quando a Agência Nacional de Águas (ANA), organismo de Estado criado para a gestão estratégica do uso da água no Brasil, propõe 530 obras para solucionar os problemas de abastecimento hídrico até 2015 em todos os núcleos urbanos acima de cinco mil habitantes do semi-árido brasileiro até 2015. Essas obras beneficiariam as populações mais necessitadas e custariam R$ 3,6 bilhões, portanto, mais baratas, mais abrangentes, mais eficientes que qualquer obra de transposição hídrica.

Em nosso encontro, acima referido, o senhor me disse que "não seria louco de levar essa obra à frente se apresentássemos uma alternativa melhor". Agora, somando as obras propostas pela ANA juntamente com as iniciativas de captação, armazenamento e manejo de água de chuva desenvolvidos pela Articulação do Semi-Árido (ASA), o senhor tem uma chance de escolha muito melhor, pela qual seu governo ficará marcado para sempre na história do nordeste brasileiro, sua terra natal.

Não faltam alternativas. Falta uma decisão política mais lúcida.

Nosso pedido, senhor presidente, é que se retome o diálogo e que se garanta que seja amplo, transparente, verdadeiro e participativo, incluindo toda a sociedade do São Francisco e do Semi-Árido, conforme foi pactuado em Cabrobó em outubro de 2005 e renovado através de pedido formal por carta protocolada em 6 de fevereiro último.

Senhor presidente, sempre vestimos sua camisa. Ainda estamos vestidos nela. Nossa contribuição de fiel militante da causa do povo é para o senhor seja verdadeiramente aquilo a que se propôs, o de ser o presidente de todo o povo brasileiro, especialmente dos pobres deste país, por serem os que mais necessitam de sua atenção.

Receba nossa saudação amiga e fraterna, com votos de uma Feliz e Santa Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM
Bispo Diocesano de Barra - Bahia

4 comentário(s):

Brunno disse...

A fim de complementar este texto, há um artigo de Roberto Malvezzi, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), cujo título é "Os Governadores Petistas e a Transposição" e pode ser encontrado no link abaixo:

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26480

Neste texto, o autor faz uma análise deste projeto a partir de um viés político.

Anônimo disse...

Entendo que a questão não é apenas técnica ou da verdadeira e justa política: o interesse é de baixa política. Na decisão do governo pela transposição e não pelas soluções menores e mais indicadas se dá por interesses particulares: do próprio presidente da república: que quer deixar uma marca indelével na memória do povo (nem que seja uma enorme cicatriz); dos corruptos que enxameiam o governo que vêm uma grande chance de desvios numa grande obra; dos políticos locais que querem ver seu nome associado a uma obra megalomaníaca; das empreiteiras que preferem ganham muito em uma grande obra do que ganhar menos em pequenas obras mais espalhadas e que (diga-se) podem muitas vezes ser tocadas com a mão-de-obra local e disponivel (o desemprego local é imenso). Bem, o Maluf - como prefeito em São Paulo - deixou sua marca: o minhocão - cujo trajeto original era pela Barra funda e, na mudança politiqueira destruiu um bairro nobre (as cercanias da av. S. João) e enfeiou a cidade. Hoje se pensa em desmonta-lo pois o transito nem é assim tão melhor... Acho que a transposição é o minhocão do Lula. Outro ponto em que ambos se parecem...

Brunno disse...

George, concordo contigo no que diz respeito às questões políticas. De fato, as obras megalomaníacas são aquelas que, em futuras campanhas eleitorais, serão exploradas pelos "marketeiros" políticos. Infelizmente, na mentalidade de nossos políticos, o que conta são as obras visíveis, que "causam barulho". As obras e reformas estruturais, que tendem a beneficiar o país a longo prazo (como por exemplo a Educação) não recebem a atenção que merecem. No caso da transposição do Velho Chico, acredito que haja muitas outras alternativas viáveis, menos dispendiosas economica e ambientalmente. Mas será que essas alternativas terão visibilidade suficiente para uma adesão política? Eis a questão...

Unknown disse...

Eu concordo com voces,isso so beneficiará o brasil de forma politica e economica, pois Os impactos sócio-ambientais da transposição do rio São Francisco não estão sendo analisados pelos governantes , desde o seculo XX que esse plano vem tentando ser executado, Mas a questão é se acontecer msm a transposição, como será q os politicos solucionarão os problemas que a transposição causará?Isso se solucionar ...